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Brasil

Por e para TODAS: Lúcia Xavier quer que as demandas das mulheres negras sejam atendidas nas revisões da Plataforma de Pequim



28.02.2025


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A campanha #PorEParaTodas é um chamado à ação no 30º aniversário da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim. A ativista antirracista Lúcia Xavier, da ONG Criola, fala sobre as ameaças à vida das mulheres negras e suas estratégias de luta

A trajetória da assistente social e ativista brasileira Lúcia Xavier se entrelaça à dos movimentos antirracistas que sacudiram o Brasil no final da década de 1970. Não por coincidência, o mesmo período das lutas pela redemocratização do país, após anos de ditadura militar.  

A carioca iniciou seu ativismo junto dos movimentos pelos direitos de crianças e adolescentes, acompanhando também aqueles que lutavam pelo direito à moradia, à saúde e ao transporte. Essa caminhada pavimentou seu envolvimento com o movimento negro e foi a partir daí que ela decidiu refletir, trabalhar e atuar pelas mulheres negras. 

Em 1992, Lúcia fundou na cidade do Rio de Janeiro a ONG feminista antirracista Criola, com o objetivo de empoderar mulheres negras. “Nascemos muito próximas dos resultados das conferências das Nações Unidas. Não só a de Pequim, mas também as do Cairo, Durban e Viena falam muito da nossa trajetória e daquilo que aprendemos no processo do feminismo, da luta contra o racismo e contra a LGBTQIAP+fobia no Brasil”, conta a ativista. 

O pensamento e as práticas de Lúcia são profundamente orientados por uma perspectiva interseccional. Com 66 anos, ela diz sentir uma “esperança incrível” na ação coletiva das mulheres, especialmente das mulheres negras. “Elas não transformam o mundo porque sofrem; elas o transformam para criar vidas com mais felicidade, alegria e condições. Essa sabedoria, esse legado, esse modo de pensar e viver a vida é muito inspirador”, reflete. 

Violência: a maior ameaça à vida e à dignidade das mulheres negras 

Lúcia entende que a violência é, sem dúvidas, a maior ameaça às mulheres negras e suas lutas, fundada no racismo profundamente arraigado da sociedade brasileira. “Não morre só a mulher. Morrem seus filhos, familiares, a capacidade de poder sobreviver e participar da vida em sociedade. Às vezes, morre tanta gente perto delas que parece uma guerra constante. Essa violência é produzida pelo Estado, pela sociedade e por outros grupos que acreditam que, quanto mais tempo estivermos sob controle, mais tempo de dominação eles terão”, alerta.  

O aparato do Estado violento está sempre na direção da população negra, continua Lúcia, e a juventude é uma vítima preferencial. De fato, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que, dos mortos pelas polícias, 82,7% eram negros, enquanto jovens negros com idade entre 12 e 29 anos são 71,7% dessas vítimas. Nas duas últimas décadas, têm ganhado força no Brasil os movimentos formados por mães afetadas pela violência de Estado, especialmente em estados como São Paulo e Rio de Janeiro.  

Em sua grande maioria negras, essas mães se unem para apoio mútuo e para lutar por justiça e reparação. A ONG Criola tem apoiado esses movimentos e lançou recentemente o relatório “Impacto da violência produzida pelas polícias brasileiras contra as mulheres negras cis e trans”. Lúcia reflete que, se antes lidavam com os sentimentos de luto, vergonha e incapacidade no âmbito privado, elas agora vêm a público para defender a honra e a dignidade dos seus filhos, o que tem contribuído para alargar as lutas das mulheres negras no Brasil.  

“Essas mães querem dizer da violência que o Estado cometeu e mostrar que essa violência tem a ver com o racismo instituído no país”, frisa a ativista.  

As lutas antirracistas no Brasil: muitas frentes, estratégias comuns  

Apesar das muitas dificuldades, ou talvez por causa dela, o movimento de mulheres negras no Brasil é amplamente celebrado por sua resiliência e importância. Mesmo em diferentes frentes – contra a violência, a mortalidade materna, pela vida das juventudes e por mais representatividade na esfera política, por exemplo – Lúcia identifica características comuns à luta antirracista no Brasil. 

Uma delas é a busca incessante pelo diálogo, mesmo que “raivoso” ou mesmo diante de algo como “você tem que se levantar para os outros sentarem” [em referência a Rosa Parks]. Isso pode ser traduzido na participação em audiências públicas, em manifestações de rua e até em apostas mais ousadas, como se candidatar a espaços eletivos. Outra característica, e complementar à primeira, são o enfrentamento e a reação – como o pleito recente por uma ministra negra no STF, a luta por mais parlamentares negras e o repúdio ao extermínio da juventude negra pobre e periférica.  

“Essas duas características se somam a uma metodologia de luta que bebe em concepções sobre ancestralidade, interseccionalidade e direitos. Também afirma as mulheres negras como um sujeito político potente, que é capaz de transformar a sociedade ao padrão de civilidade, às normas e regras deste país”. 

Lúcia conta que a ONG Criola desenvolve ações de cuidado não só dessas ativistas, mas de outras mulheres negras não envolvidas diretamente nas lutas, como catadoras, empregadas domésticas e aquelas em situação de violência.  

“É como se você estivesse em um lugar com água até o tornozelo e não quisesse que a sua pele começasse a soltar. Então você vai aprender a viver com aquela pele descascando. A questão é se você se conformará com isso. Se não tem como tirar aquela água, é possível suspender o pé, e eu acho que é isso que elas e todas nós temos feito a vida inteira: encontrado estratégias para o enfrentamento disso tudo. E muitas delas relatam que essas dores também fizeram com que elas se movimentassem em torno da transformação da sociedade. Isso é o que eu acho mais fantástico: a tomada de consciência de uma ação coletiva”.    

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Lúcia Xavier fundou a ONG Criola em 1992, para contribuir com o empoderamento de mulheres negras brasileiras. Foto: Liz Lemos

O que ganhamos desde Pequim e os novos desafios à frente 

Lúcia lembra que conferências como as de Pequim e Durban ajudaram a moldar novas concepções, novas normativas e novas políticas, bens e serviços de maior qualidade para as mulheres, impulsionadas sobretudo pelo movimento feminista brasileiro. Em particular, se traduziram em avanços importantes na legislação como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio.  

Mas seu olhar atento e sensível pontua que a distribuição desses ganhos foi desigual para mulheres negras e indígenas, por exemplo. Se nas três décadas desde Pequim houve avanços inegáveis, houve também retrocessos atravessados por elementos de classe, raça, e condição socioeconômica. “Eu diria que no campo dos direitos sexuais e reprodutivos a gente ainda vive dramas profundos, ligados à falta de autonomia e tomada de decisão sobre o corpo das mulheres”, exemplifica.  

Lúcia lembra também que questões como trabalho sexual, migração forçada e tráfico de pessoas se intensificaram desde a Conferência de Pequim e precisam igualmente ser endereçadas durante as revisões da Plataforma previstas para este ano. Além disso, devem enfrentar de forma veemente o que a ONG Criola chama de racismo patriarcal cishéteronormativo e, ainda, “incorporar os outros jeitos de ser mulher”, diz Lúcia em menção às lutas por reconhecimento das mulheres trans.  

Neste momento de repactuação dos compromissos de Pequim, Lúcia avalia que é preciso renovar as lideranças e criar “novas camadas de sujeitos” que possam dar continuidade à Plataforma. As jovens, para ela, têm papel essencial nisso: elas têm mais recursos que a sua geração e podem aliar a consciência das dificuldades impostas pelo racismo à imaginação de outros mundos possíveis. 

“Viver a vida como ela é importantíssimo. Mas ela também pode ser imaginada de outra maneira, vivida de outra maneira, e só jovens pode fazer isso. Só jovens podem criar expectativas de vida e novas possibilidades. Então, sejam corajosas”.