No Pará, terapeuta ocupacional ressalta a importância de políticas públicas para o cuidado de pessoas com deficiência
21.09.2023
Há 10 anos, Vanessa Miglio promove a inserção e o empoderamento das pessoas com deficiência usuárias do Centro Dia em Belém (PA)
Mais de 18 milhões de pessoas com deficiência, com dois anos de idade ou mais, compõem a população brasileira atualmente, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) 2022. Visando a ampliação do debate sobre a necessidade de políticas públicas que promovam a igualdade e a inclusão dessas pessoas na sociedade é que, há 18 anos, o dia 21 de setembro é lembrado como o Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência.
Há pelo menos uma década, Vanessa Miglio conduz sua carreira profissional alinhada a esse objetivo. E foi pela identificação com o tema que ela participou da formação piloto para a formulação de políticas públicas de cuidado, por meio do projeto Ver-o-Cuidado, implementado em Belém (PA) por meio da parceria entre ONU Mulheres, Prefeitura de Belém e Fundação Papa João XXIII (Funpapa), com apoio da Open Society Foundations. Ela trabalha em um Centro Dia de Referência para Pessoas com Deficiência, uma política pública de cuidado destinada ao atendimento especializado a pessoas idosas e a pessoas com deficiência com algum grau de dependência de cuidados e apoia famílias cuidadoras de pessoas com deficiência no compartilhamento desses cuidados.
Como terapeuta ocupacional do Centro Dia ligado à Funpapa Vanessa atua para o empoderamento, a garantia de direitos e a atenção a pessoas com deficiência e suas famílias. A partir do trabalho de uma equipe interdisciplinar, da qual Vanessa faz parte, pessoas com deficiência que dependem de cuidado e que frequentam o Centro Dia são acolhidas e inseridas em uma série de atividades que, entre outros aspectos, contribuem para a autonomia pessoal.
O exercício dessas tarefas é divido em grupos de habilidades esperadas. “Os grupos de terapia ocupacional seguem a perspectiva das Atividades de Vida Diária (AVDs) e Atividades Instrumentais de Vida Diárias (AIVDs), mas nós também trabalhamos os aspectos psicomotores, habilidades sociais e manualidades, mas com foco na promoção da independência e da autonomia dessas pessoas”, explica Vanessa.
A terapeuta ocupacional conta que, nas AVDs, as pessoas são orientadas a realizar ações de higiene pessoal, troca de roupas, alimentação e outras que atendam às necessidades físicas básicas. Já nas AIVDs, são executadas tarefas como lavar louças, cuidar do lar, administração de medicação própria, fazer compras e outras que contribuam para uma rotina mais independente. O trabalho de acompanhamento não é desenvolvido somente dentro do ambiente do Centro Dia, mas também ocupa espaços da cidade, como mercados, lojas e restaurantes, fortalecendo a integração das pessoas com deficiência à sociedade.
Ao longo da vida, todas as pessoas apresentam necessidades de cuidados, que não se limitam apenas a ações de cuidados pessoais, por exemplo. Ainda que nem todas as pessoas com deficiência necessitem de apoio para realizar atividades, como as de uma rotina de higiene, estima-se que, no Brasil, por volta de 2,5 milhões de pessoas com deficiência com dois anos ou mais de idade apresentem dificuldades para realizar essas tarefas. É a partir de espaços como o Centro Dia, por meio do serviço de Proteção Especial para Pessoas com Deficiência e Idosas, que pessoas com deficiência dependentes de cuidados em situação de vulnerabilidade e suas famílias têm acesso a essas garantias.
Enfrentamentos – Ao longo de todos os anos de atendimento no Centro Dia, a terapeuta ocupacional tem na memória inúmeros exemplos de dificuldades, nas mais diversas esferas, pelas famílias que buscaram no Centro Dia o apoio para acolhimento de suas vivências. Um acompanhamento ganha destaque em seus pensamentos: a reflexão de uma mãe, mulher deficiente, ao perceber que, com o falecimento de sua genitora, ela se tornara a principal responsável pelo cuidado da própria filha, uma jovem também deficiente. “Eu acho que o medo de toda mãe é morrer e deixar o filho para ser criado sem saber por quem e como vai ser, porque a gente sempre acha que a gente vai criar melhor o filho do que qualquer outra pessoa. Agora imagine isso quando a gente pensa em uma mulher com deficiência”, indaga Vanessa.
No Brasil, 10% da população feminina possuem alguma deficiência, um cenário um pouco maior do que comparado com os homens, que compõem 7,7%. Além disso, as pessoas de cor preta também têm ocupam um percentual maior (9,5%) do que as demais raças, segundo levantamento da Pnad Contínua 2022. O perfil das pessoas atendidas pela equipe de trabalho de Vanessa é formado majoritariamente por jovens com deficiência intelectual que não concluíram os estudos ou que sequer iniciaram o processo de alfabetização, diante dos enfrentamentos percorridos por suas famílias no acesso e permanência nas instituições de ensino. Dados da Pnad Contínua mostram que a taxa de analfabetismo para as pessoas com deficiência foi de 19,5%, enquanto para as pessoas sem deficiência foi de 4,1% no terceiro trimestre de 2022.
É a partir desse contexto que a profissional chama a atenção para os desdobramentos das barreiras encontradas ao longo da vida das pessoas com deficiência e suas famílias, que acabam as colocando no chamado círculo vicioso de desigualdades. “São anos acompanhando esse cuidado. Anos levando para o médico, anos levando para a escola, anos recebendo recusas na escola, anos de preconceito, anos de exclusão, anos em que muitas vezes, e a gente vê que é um perfil muito comum, de pessoas cuidadoras que não seguem uma carreira profissional, questão de estudo, que vive um processo de exclusão social”, destaca Vanessa.
Como profissional remunerada de uma profissão ligada ao cuidado, o desejo de Vanessa é que as necessidades das pessoas com deficiência e suas famílias fossem ouvidas e discutidas com mais atenção para que, assim, o direito ao cuidado fosse plenamente garantido. “Gostaria que a sociedade tivesse um olhar maior sobre a pessoa com deficiência, sobre o adulto com deficiência, principalmente as mulheres com deficiência e as cuidadoras familiares. Eu trago muito essa discussão de mulheres porque é onde a gente vê que o impacto maior em tudo”, avalia.
Ainda de acordo com Vanessa, pessoas com deficiência e suas famílias são mais expostas à ausência de oportunidades. As mulheres são as principais ou exclusivas responsáveis pelo trabalho de cuidado no mundo, inclusive de pessoas com deficiência. Essa carga de trabalho não remunerado faz com que elas tenham menos tempo para se dedicar a atividades como estudo e trabalho remunerado. A consequência é maior dificuldade para entrada e ascensão no mercado e trabalho e, portanto, sua autonomia econômica. Em contrapartida, nas profissões remuneradas ligadas ao cuidado, como enfermagem, trabalho doméstico, assistência social e outras, são as mulheres que também representam a maioria nos postos de trabalho.
A proteção social tem papel fundamental para a redução dessas desigualdades, contribuindo inclusive para igualdade de gênero, quando a sua implementação promove a corresponsabilidade pelo cuidado para além do âmbito familiar, gerando, assim, mais oportunidades para mulheres que cuidam e que precisam de cuidados.
Confira, no vídeo a seguir, um pouco mais sobre a história de Vanessa:
Ver-o-Cuidado – O projeto Ver-o-Cuidado é uma parceria entre ONU Mulheres, Prefeitura de Belém (PA) e Fundação Papa João XXIII (Funpapa), com apoio da Open Society Foundations, que tem por objetivo estabelecer um piloto de Sistema Municipal de Cuidados no município. Iniciado em maio de 2022, o projeto é desenvolvido em duas frentes. A primeira tem como foco o apoio à gestão municipal e às instituições públicas na elaboração e implementação desse sistema de cuidado. Paralelamente a essa construção, as atividades também alcançarão as trabalhadoras do cuidado, remuneradas ou não, atuando no desenvolvimento de suas capacidades nos aspectos pessoais e profissionais, para que acessem trabalho decente e autonomia econômica.
A iniciativa é conduzida por um comitê gestor do qual fazem parte 12 organizações: Fundação Papa João XXIII (Funpapa), Secretaria Municipal de Administração da Prefeitura de Belém (Semad), Secretaria Municipal de Educação de Belém (Semec), Secretaria Municipal de Saúde de Belém (Sesma), Banco do Povo de Belém, Coordenadoria da Mulher de Belém (Combel), Coordenadoria Antirracista (Coant), Coordenação das Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (Copsan), Coordenadoria da Diversidade Sexual (CDS), Coordenadoria de Comunicação Social de Belém (Comus), Instituto de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do Município de Belém (Iasb) e ONU Mulheres.