Mulheres negras intensificam busca por políticas de assistência social para enfrentar a pandemia Covid-19
31.08.2020
Série de lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030” em tempos de crise e da pandemia Covid-19” foi desenvolvida pela ONU Mulheres Brasil e o Comitê Mulheres Negras em parceria com o Canal Preto, para visibilizar as mulheres negras, oportunizando espaços para que as suas vozes circulem e mobilizem ações e políticas públicas, empresariais e sociais para eliminar o racismo e o sexismo na pandemia
Confira os outros vídeos da série de lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030 em tempos de crise e da pandemia Covid-19”: Racismo e Economia | Racismo e Política de Assistência Social | Racismo e Saúde | Racismo e Territórios – Quilombos
“Na porta da assistência social, a gente observa o aumento no número de famílias e de mulheres negras que não vinham sendo acompanhadas diretamente pela assistência social e hoje recorrem aos 8.400 Centros de Referência de Assistência Social no país não só em busca de apoio protetivo ou situação de violência ou de violação de direito, mas em busca de alimento pela falta de segurança alimentar pela qual as suas famílias estão expostas. Pela falta de renda imediata para suprir necessidades nesse período de isolamento social que coloca outros fatores de risco dentro do próprio domicílio”, afirmou a assistente social e pesquisadora Renata Ferreira.
Ela foi uma das convidadas do debate virtual “Política de Assistência Social e Enfrentamento do Racismo: Inclusão social da população negra”, segunda das quatro lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030 em tempos de crise e da pandemia Covid-19”, mediada pela defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU Mulheres Brasil Kenia Maria e promovida pelo Canal Preto e pela ONU Mulheres.
Renata Ferreira considerou que a demanda da população negra por políticas de assistência social tem se ampliado e urge debate mais aprofundado e respostas mais céleres e coordenadas. Para ela, na pandemia Covid-19, “a questão econômica está sendo colocada como principal ponto. A maior discussão, sobre um país em que as famílias mais vulneráveis são chefiadas por mulheres negras, e no histórico das políticas sociais, da política de assistência social, seguridade e previdência, sobre segurança de renda, já reconhecemos que a renda por si só ela não supre as necessidades. Não existente uma segurança de renda sem estar acompanhada de oportunidades e de outras seguranças básicas. Este é um ponto que precisamos discutir com muita firmeza, porque hoje temos benefícios sociais contributivos, como o Benefício de Proteção Continuada, benefícios desvinculados, transferência de renda, como o Bolsa Família. Temos os benefícios eventuais e o auxílio emergencial”, elencou.
Entre os desafios, a pesquisadora destacou o SUAS Sem Racismo para enfrentar o racismo e o sexismo no contexto da pandemia Covid-19. “A gente conseguir colocar em prática o que fizemos lá em 2017, quando ousamos levar para o Conselho Nacional de Assistência Social a campanha SUAS Sem Racismo. Nós recebíamos questionamentos de que não faria sentido a assistência social falar de racismo, porque a questão racial está na estrutura da Política de Assistência Social”, contou. Garantir a inclusão da população negra na assistência social, conforme Renata Ferreira, requer “reforçar a intersetorialidade. A assistência social não tem respostas únicas. Nós não teremos pós-pandemia sem assistência social. É importante a gente perceber que é preciso ter um enfrentamento pela assistência social, mas integrado entre as políticas, que considere de fato o lugar que a mulher negra, a forma como ela está sendo tratada nos impactos da pandemia, com a integralidade necessária”, completou.
Recorte racial das demandas – Segundo dados do Cadastro Único, chamado Cadúnico, em abril de 2018, entre as quase 14 milhões de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, mais de 90% dos responsáveis familiares eram mulheres e 75%, entre elas, eram mulheres negras. No Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, um dos serviços da proteção social básica do SUAS (Sistema Único de Assistência Social), mulheres e meninas constituíam 55% do total de atendidas. Este percentual abrange cerca de 2 milhões de pessoas, sendo mais de um milhão de mulheres/meninas, entre as quais 64% são negras, participavam desse serviço no ano de 2018.
Em outubro de 2018, os dados do Sistema de Informações do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos revelaram que as situações de vulnerabilidade e risco individual e social incidem, sobretudo, entre as pessoas negras. Dos cerca de dois milhões de atendimentos realizados trimestralmente nesse serviço, 608 mil eram para pretos e pardos em situações prioritárias, enquanto 268 mil eram brancos e mais de 5 mil para indígenas.
Entre as crianças e adolescentes que vivenciaram situação de trabalho infantil, em outubro de 2018, 81,9% eram pretas e pardas e 16,7% eram brancas. Em termos de vivência de violência e/ou negligência, 70,8% são pessoas pretas e pardas e 28% brancas. Em situação de abuso e/ou exploração sexual, 68,6% das pessoas participantes do serviço eram pretas e pardas e 29,8% são brancas. Já quanto às crianças e adolescentes em situação de rua, 77,9% eram pretas e pardas e 20,7%, brancas.
Emancipação de cidadãs e cidadãos vulneráveis – Apesar da intensa demanda à Política Nacional de Assistência Social, os investimentos públicos vêm sendo reduzidos, o que torna mais difícil o atendimento às populações vulnerabilizadas na pandemia Covid-19. O alerta é feito por Clátia Vieira, do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030. “A precarização dessa política começa em 2016. A Política de Assistência Social é estrutural numa gestão, porque ela vai perpassar todas as áreas, saúde, educação, cultura”, considerou.
Vieira acrescentou que “a pandemia mostrou milhões de pessoas civilmente desconhecida. Na hora em que as pessoas foram em busca do auxílio emergencial, a gente constatou milhões de pessoas que não existem civilmente, pessoas que não têm documentação. Isso tem tudo a ver com assistência social, porque reúne por meio do CadÚnico todas as políticas existentes”.
Clátia Vieira reiterou a vontade política como um compromisso para a eliminação do racismo. “Nós sabemos o que a Covid-19 tem feito nas áreas mais populares, nos territórios negros, nos quilombos, nas áreas indígenas. O Estado precisa ter vontade política, porque as pautas e os encaminhamentos que o Estado solicitou à população negra, a comunidade negra organizada respondeu em conferências, encontros, rodas de conversa, marchas. Ter vontade política é descontruir racismo. Descontruir racismo é pautar o racismo. O Estado
Pandemia e assistência social – Para Tatianne Carvalho, coordenadora de Centro de Referência Especializado de Assistência Social, lotada na Prefeitura de São Luís, a pandemia Covid-19 traz mais pressão ao serviço público diante do racismo institucional. “O racismo e a naturalização da discriminação nas relações sociais contribuem para o silêncio, assim como o mito da democracia racial. Os nossos profissionais precisam ser instruídos e isso tem que ser trabalhado dentro da própria instituição. Como a gente age quando um funcionário terceirizado com assédio moral racista ou sexista contra uma servidora negra? Ou num espaço homoafetivo? Como isso será feito lá fora quando vamos ofertar o serviço, atender e amparar o público?”, questionou a assistente social.
Ao expor uma das práticas bastante comuns, roda de ciclo restaurativo com mulheres, Tatianne Carvalho salientou a prevalência do público de mulheres negras. “Precisamos trabalhar para o enfrentamento do racismo e do sexismo no contexto de programa de uma forma mais formalizada e institucionalizada. Travar isso na agenda pública”, disse Tatianne Carvalho.
A gestora de assistência social citou a subnotificação como um dos obstáculos enfrentados na pandemia Covid-19. “O que a gente identificou nesse momento da Covid-19? A gente percebeu a nossa fragilidade no uso das ferramentas tecnológicas, porque tivemos limitação de fazer e promover atividades coletivas. A gente precisava atuar num formato diferenciado e entrar no mundo dessas mulheres, nos domicílios. Há invisibilidade das situações e das demandas. Sabemos que no confinamento situações múltiplas aconteceram, mas isso não chegou enquanto dado. Em termos, eu ainda percebo subrregistro. Se o equipamento não estiver mergulhado e penetrar nas comunidades e ser de fato uma política territorializada, de que forma a gente chega até essas mulheres? De que forma a gente faz a busca ativa? Se a gente ficar esperando chegarem os casos de pessoas que vivenciam transfobia, a gente tem número zero. As pessoas não vão. Até que ponto estamos sendo equipamento de referência, se essas pessoas não estão chegando até nós? Onde elas estão”, indagou.
Tatianne Carvalho mencionou a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial “como compromisso a ser colocado em prática por todas e todos”, a fim de assegurar o alcance da Política Nacional de Assistência Social à população negra.
Vozes das mulheres negras – As lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030” em tempos de crise e da pandemia Covid-19” fazem parte da estratégia de comunicação e advocacy da ONU Mulheres e do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, composto por entidades organizadoras da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, que completa 5 anos, em novembro de 2020.
As lives foram desenvolvidas por meio da parceria com o Canal Preto, uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho, ONU Mulheres e Cáritas Brasileira.
No diálogo com a ONU Mulheres, o movimento de mulheres negras tem colaborado para fazer avançar a mobilização em torno da incorporação de gênero e raça em agendas internacionais dos Estados-membro da ONU. Entre elas, estão a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, composta por 17 objetivos globais e o princípio de não deixar ninguém para trás do desenvolvimento. Outra agenda importante é a Década Internacional de Afrodescendentes, criada pelos Estados-membros da ONU e com prazo de execução até 2024.