Conheça Valéria Carneiro, liderança quilombola paraense que faz a diferença com ações voltadas para a promoção da saúde e dos direitos humanos de sua comunidade
31.07.2022
Parceira da ONU Mulheres na implementação do projeto “Direitos humanos das mulheres indígenas e quilombolas: uma questão de governança!”, Valéria Carneiro conta sua história de vida e sua mobilização no enfrentamento à pandemia de COVID-19
Quando chega em casa, Valéria Carneiro sofre com insônia e suas lágrimas caem. “Às vezes, meu pescoço dói do tanto que eu preciso erguer a minha cabeça”, desabafa. Ela, então, se pergunta por qual motivo ainda tem que passar por essas violências cotidianas: os olhares no aeroporto, as pessoas que se afastam no ônibus e os seguranças que a abordam nas lojas. “Eu tenho que me vestir todos os dias com uma armadura de ferro e uma espada na mão para ultrapassar o dia”, reflete Valéria, uma mulher negra paraense que discorda do argumento de quem diz que basta estar bem arrumada para não sofrer racismo.
Coordenadora executiva de igualdade de gênero da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará – Malungu, parceira da ONU Mulheres na implementação do projeto “Direitos humanos das mulheres indígenas e quilombolas: uma questão de governança!”, no Pará, Valéria Carneiro se preocupa com o adoecimento psicológico da população negra, especialmente das mulheres. “Na insistência de mostrar que somos fortes, a gente se destrói”, observa Valéria, que considera o estereótipo de mulher negra guerreira prejudicial.
Aos 42 anos, Valéria mantém estreita relação com Pau Furado, sua comunidade quilombola de origem, localizada no município de Salvaterra (Pará). Ao olhar para as mulheres responsáveis por sua formação, Valéria se vê como um reflexo da avó e da mãe, que também se mobilizaram em mutirões, nos trabalhos nas comunidades e grupos da igreja. “A gente precisa ser respeitada como mulher, como ser humano, como ativista, como mãe, como estudante, como agricultora”, reforça a ativista.
Valéria conta que até os 11 anos foi criada pela avó, pois a mãe se mudou para Belém para trabalhar e não era possível que a filha da trabalhadora doméstica vivesse na casa do patrão. Na verdade, a sua avó é uma tia-avó. Afinal, a avó biológica morreu no parto e a tia-avó se encarregou de cuidar da mãe de Valéria. Ela morava em outro município, mas se estabeleceu em Pau Furado. Valéria reconhece o sacrifício da avó, que precisou se reinventar. O avô, que ela chama de pai até hoje, também foi uma referência importante. Além de ser presidente da festa do padroeiro da comunidade, também chamava as crianças para treinar futebol. E Valéria corria para o campo, apesar da avó não gostar de ver a menina no meio dos meninos.
Majoritariamente negras, as comunidades quilombolas têm um modo de vida que preza pelo coletivo. Em sua comunidade, Valéria trabalhou com agricultura familiar na lida da roça com os avós. Durante sua vida, foi e voltou para Belém, buscando oportunidades de estudo e trabalho. Sua história e os laços familiares a motivaram a se envolver em mobilizações pela comunidade. Em 2006, a líder comunitária sofreu com duas grandes perdas. A mãe morreu em decorrência de um câncer de colo de útero não operável e a avó, com Alzheimer, também faleceu. Valéria conta que entrou em depressão. Contudo, dois anos depois, ela conheceu o fotógrafo Luiz Braga, que realizou exposições nacionais e internacionais após fotografar a comunidade e as imagens viralizarem. “Foi me dando uns estalos, eu preciso voltar, eu preciso reagir”, relembra.
No mesmo ano, ela se envolveu com a Malungu. Em sua função de coordenadora executiva de igualdade de gênero, tem a oportunidade de informar mulheres sobre seus direitos, além de oferece escuta e acolhimento. Além disso, Valéria ocupa o cargo de coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ).
A pandemia teve um grande impacto nas comunidades e organizações quilombolas. Valéria recebia inúmeras notícias sobre pessoas doentes e falecimentos. A sua madrasta foi a primeira pessoa que testou positivo no município e recebeu os cuidados necessários.
Para enfrentar a situação, ela se mobilizou. Junto com outras organizações, conseguiu gravar áudios de prevenção à COVID 19 para serem veiculados em carros de som, angariou doações, articulou a distribuição de cestas básicas, propôs e executou barreiras sanitárias em comunidades quilombolas. Em parceria com um de seus seis filhos, Valéria gravou vídeos falando sobre o impacto do coronavírus e a chegada das aulas remotas, atividade que se mostrou um enorme desafio para as comunidades quilombolas, que muitas vezes não contam com infraestrutura adequada para acesso à internet.
Valéria está em constante movimento, se articulando a partir dos cargos ocupados na Malungu e na CONAQ. Em 2023, a liderança tem planos de iniciar o ensino superior e seu interesse caminha por áreas que contribuam para a sua atuação, como agroecologia, psicologia ou antropologia. Sua capacidade de articulação a conectou com a equipe de ONU Mulheres através do projeto “Direitos Humanos das Mulheres Indígenas e Quilombolas: uma questão de governança!”, implementada nos estados do Maranhão e do Pará, com financiamento da Embaixada da Noruega.