Em Brasília, 7ª Marcha das Margaridas ressalta desigualdades e reivindica direitos humanos na forma de Bem Viver
22.08.2023
Entre as demandas apresentadas ao poder público estiveram maior participação das mulheres na política, resposta à violência baseada em gênero, ao racismo e ao sexismo, segurança alimentar, autonomia econômica, justiça ambiental e climática, direito à terra e à educação, universalização da internet e inclusão digital
A 7ª edição da Marcha das Margaridas, realizada em Brasília no último 16 de agosto, teve como tema “Pela Reconstrução do Brasil e pelo Bem Viver”. De acordo com a organização do evento, mais de 100 mil mulheres ocuparam as ruas da capital federal reivindicando direitos que iam da resposta à violência à inclusão digital. Em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), a ONU Mulheres proporcionou uma oficina sobre comunicação e incidência política na programação autogestionada do dia 15, apoiou a presença de mulheres quilombolas dos estados do Maranhão e do Pará, além da confecção de 400 camisetas distribuídas às participantes. Trabalhadoras da entidade também caminharam junto com as Margaridas durante a marcha do dia 16, que saiu do Parque da Cidade, onde estavam concentradas, até a Esplanada dos Ministérios.
Realizada a cada quatro anos, a Marcha das Margaridas reúne dezenas de milhares de mulheres do campo, das florestas e das águas em busca de visibilização e garantias de acesso a direitos. Na pauta dessa edição estavam 13 eixos de reivindicações, as quais são apoiadas por diferentes compromissos assumidos nacional e internacionalmente pelo Brasil. Alguns desses eixos também já fazem parte dos direitos humanos, universais a todas as pessoas – como a resposta à violência de gênero, ao sexismo e ao racismo; a participação política das mulheres; a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sua sexualidade; vida saudável e segurança alimentar; o fortalecimento da autonomia econômica, com maior oferta de trabalho e renda; um meio ambiente limpo, saudável e sustentável e acesso à educação.
“As mulheres trabalhadoras rurais, sindicalistas, seringueiras, quebradeiras de coco, rezadeiras, marisqueiras, pescadoras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, de todas as regiões e biomas brasileiros enfrentam, todos os dias, não apenas o sexismo e a misoginia, mas também o racismo, a xenofobia, a marginalização e a exclusão social. Em nome da ONU Mulheres, expresso nossa solidariedade às Margaridas, desejando que se beneficiem igualmente dos ganhos democráticos”, ressaltou a representante da ONU Mulheres Brasil, Anastasia Divinskaya.
Para Nice Machado, líder quilombola do Maranhão, dirigente da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ) e mobilizadora comunitária da ONU Mulheres, estar na Marcha das Margaridas, para muitas, é o início de uma jornada em busca de direitos. “Quando a mulher vem pra cá, ela sai enriquecida. Muitas nunca imaginavam que a nossa luta dava pra chegar até aqui, pra ser assinada pelo Governo Federal. E nós trazemos as mulheres da base, da periferia, dos territórios quilombolas, territórios indígenas, da Amazônia, do cerrado, da caatinga, mulheres marisqueiras, ribeirinhas. E todas juntas apresentamos as propostas que temos para mudar o Brasil, para fazer a diferença nas comunidades”, ressalta.
Direitos humanos – Dona Nice, como é conhecida, é líder quilombola na cidade de Penalva, município com pouco mais de 32 mil habitantes a 250 quilômetros da capital São Luis (MA). Na região, uma das atividades econômicas predominantes é a extração e quebra do coco do babaçu – atividade realizada majoritariamente por mulheres. Há décadas, comunidades tradicionais maranhenses que vivem dessa atividade, entre elas, a de Dona Nice, buscam garantias de acesso a direitos humanos, como trabalho decente, remuneração digna, acesso à saúde, educação e moradia.
“Um dos eixos da Marcha é a demarcação e titulação das terras quilombolas, indígenas e da agricultura familiar. Buscamos moradia digna, porque nós, quilombolas, indígenas, trabalhadoras e agricultoras, sempre trabalhamos nesse país. Temos 523 anos de luta, mas não temos uma casa para morar, um palmo de terra pra viver, pra produzir, pra preservar e botar o pão na mesa. Se a gente não tiver terra, não tem casa, não tem escola, não tem saúde, não tem nada”, afirma Dona Nice. Além do acesso à moradia, educação e saúde, Dona Nice trabalha, dia após dia, para que a cultura e o trabalho realizado pelas quebradeiras de coco sejam valorizados. “Em Penalva, são 10.100 famílias que quebram coco. A gente vende o coco pro atravessador, que vende pra empresa no valor que ele quiser, enquanto nós, quebradeiras, ficamos miseráveis. Melhorando a vida de cada uma, melhoramos a vida de toda a comunidade. O que eu conquisto pra mim, é importante pra todas, porque eu também sou mulher, e eu quero que todas as mulheres cresçam juntas.”
Trabalho conjunto – Além das lideranças da ACONERUQ, a ONU Mulheres apoiou a participação de lideranças beneficiadas pelo projeto “Direitos humanos das mulheres indígenas e quilombolas: uma questão de governança”, entre elas, Maria José Brito de Sousa, do quilombo de Icatu, no município de Mocajuba (PA) Em visita à Casa da ONU, na tarde do dia 16, ela compartilhou algumas de suas preocupações, em especial relacionadas ao bem-estar e à sustentabilidade das comunidades tradicionais e extrativistas locais, impactadas por grandes projetos de obras de infraestrutura – como o derrocamento do Rio Tocantins para a construção de uma hidrovia para o escoamento de minérios e grãos, afetando território tradicional quilombola. A pauta foi compartilhada pelas demais lideranças presentes na reunião.
Maria José afirmou que a comunidade em que vive tem sofrido os impactos do projeto e das mudanças ambientais provocadas pela ação humana. Sem acesso ao rio, toda sua economia, cultura e sobrevivência ficam prejudicados. As mulheres quilombolas são parte importante da luta em defesa do meio ambiente em busca de justiça climática. “Enfrentar os impactos da devastação ambiental é uma agenda muito importante para nós. A ONU Mulheres chegou ao território trazendo depois o Curso Tajá, que ampliou nossa visão pela luta dos direitos das mulheres quilombolas”, afirmou.
Também do Pará, Maria Deuza Conceição é articuladora local da ONU Mulheres no município de Mocajuba (PA) e trabalha com 14 coletivos de mulheres quilombolas na região. Para ela, o enfrentamento da violência baseada em gênero está entre os grandes desafios da sua comunidade – por isso a importância do compromisso da administração pública com iniciativa de proteção e acolhimento a mulheres, em resposta às demandas da Marcha.
“Muitas vezes, pensamos que ser violentada é só com uma palmada, mas somos violentadas em todo momento, no trabalho, com violência verbal, sexual”, explica. “Eu venho lutando com as mulheres quilombolas desde 2012, com reuniões, palestras, indo aos encontros. Eu sinto muito orgulho com esse trabalho, de fazer com que as mulheres entendam seus próprios direitos, que enxerguem isso”, declara.
Para a representante da ONU Mulheres no Brasil, Anastasia Divinskaya, é essencial que as mulheres participem da elaboração e monitoramento de políticas públicas e das mudanças que afetam suas vidas e de suas comunidades. “Mulheres de movimentos de base criam mudanças em todo o país. Mulheres quilombolas inspiradoras como vocês estão trazendo mudanças duradouras rumo à igualdade e à democracia. No entanto, para isso, é preciso que participem da tomada de decisões que afetam suas vidas e suas comunidades. Portanto, a ONU Mulheres não poupa esforços para trabalhar com e para vocês, a fim de tornar a realização de seus direitos de participação na vida política e pública, empoderamento econômico e justiça climática uma realidade viva”, afirmou a representante durante a reunião com as lideranças.
Comunicação e incidência política – Comunicação popular na prática, com mais de 100 mulheres de todo o Brasil, trocando suas experiências de forma criativa, com muita cantoria e sabedoria popular. Realizada a partir de uma parceria entre a ONU Mulheres e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), a Oficina de Comunicação e Incidência foi uma atividade autogestionada que aconteceu no primeiro dia da Marcha das Margaridas (15), em Brasília. A atividade teve como objetivo fortalecer a rede de comunicadoras quilombolas a partir da compreensão da comunicação popular como uma ferramenta política para qualificar a incidência política e influenciar decisões sobre temas prioritários de direitos humanos das mulheres. Na ocasião, foi compartilhado um documento produzido por ONU Mulheres que traça os paralelos dos 13 eixos que mobilizaram a Marcha das Margaridas de 2023 com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que têm força de lei no país.
Perguntadas sobre a importância da comunicação para a mobilização política em seus territórios e coletivos, Geovania Machado Aires, quilombola de Penalva (MA), brinca: “a gente se comunica desde o nascimento, quando começamos a chorar para pedir para mamar”. Na sequência, outra participante relembra a famosa frase de Chacrinha: “Quem não se comunica, se trumbica”. A roda de conversas foi um momento de construção coletiva, em que mulheres quilombolas e rurais se auto-perceberam e reforçaram seu potencial de comunicadoras capazes de mobilizarem suas comunidades, mas também de influenciarem a opinião pública.
“A gente cria um mundo de que para fazer comunicação a gente precisa chegar na faculdade, precisa dominar uma câmera, escrever muito bem, falar muito bem, mas não é preciso. Comunicação popular se inicia ali, no nosso núcleo familiar. E ela ganha poder quando você começa a participar de eventos, lugares e espaços como estes. E quando você começa a expor sobre a sua realidade”, reforçou Nathália Purificação, coordenadora do coletivo de comunicação da CONAQ e uma das facilitadoras da atividade. Nathalia acrescentou que a comunicação popular tem movido as estruturas e mudado muita coisa para a população quilombola. Um dos exemplos que a jornalista trouxe foram as campanhas realizadas pelo coletivo com apoio de mobilizadores comunitários durante a Covid-19. Segundo ela, foi o poder da comunicação comunitária que possibilitou a pressão do poder público para a implementação de medidas emergenciais de mitigação dos impactos da Covid-19 e acesso à vacina em territórios quilombolas.
A representante da ONU Mulheres Brasil, Anastasia Divinskaya, reforçou durante a abertura da oficina a importância da mobilização popular na garantia de direitos. “Na nossa luta por direitos humanos para todas as mulheres, estamos preocupadas com as lacunas para a plena realização dos direitos das mulheres do campo, das águas, da floresta e das cidades, mulheres de todo país que assim como as nossas parceiras do Maranhão e do Pará estão reunidas aqui. Essas lacunas permanecem devido às barreiras estruturais que reforçam as normas, práticas e políticas discriminatórias”, afirmou. “Na ONU Mulheres, nos sentimos privilegiadas por sermos parceiras e por estarmos prontas para continuar a colaborar com as soluções adaptadas às necessidades de vocês e da democracia do Brasil”, completou.
Texto: Paola Bello e Marcela Ulhoa