Especialistas defendem Política Nacional de Saúde Integral da População Negra para resposta à Covid-19
08.09.2020
Série de lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030” em tempos de crise e da pandemia Covid-19” foi desenvolvida pela ONU Mulheres Brasil e o Comitê Mulheres Negras em parceria com o Canal Preto, para visibilizar as mulheres negras, oportunizando espaços para que as suas vozes circulem e mobilizem ações e políticas públicas, empresariais e sociais para eliminar o racismo e o sexismo na pandemia
Confira os outros vídeos da série de lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030 em tempos de crise e da pandemia Covid-19”: Racismo e Economia | Racismo e Política de Assistência Social | Racismo e Saúde | Racismo e Territórios – Quilombos
Não deixar as mulheres negras para trás é um compromisso que exige mais esforço e empenho em tempos de pandemia da Covid-19, com mais de 3,5 milhões de contágios do novo coronavírus e 114 mil óbitos no Brasil, segundo monitoramento do Ministério da Saúde. Na área da saúde, entre os debates mais recorrentes estão o cumprimento dos princípios do SUS (Sistema Único de Saúde) e a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Estes temas foram abordados na conversa virtual “Racismo e Saúde: atendimento da população negra, epidemias, Covid-19 e valorização do SUS”, terceira das quatro lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030 em tempos de crise e da pandemia Covid-19”, promovidas pelo Canal Preto e pela ONU Mulheres. Com mediação de Ana Lúcia Pereira, integrante do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, o assunto foi abordado pela enfermeira, epidemiologista e pesquisadora Emanuelle Góes, a médica de família e de comunidade Denize Ornelas, membra do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, e Lúcia Xavier, assistente social, coordenadora da ONG Criola e membra Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030.
Especificidades das mulheres negras – Lúcia Xavier trouxe à tona como o viver, o adoecer, o curar e o morrer das mulheres negras é condicionado pelo racismo e pelo sexismo. “Nós, mulheres negras, já estávamos em ação antes da pandemia, porque essa dimensão do racismo patriarcal traz para nós diferentes prejuízos. Não sofremos só a discriminação. Somos o alvo preferencial das políticas de morte. Muitas vezes, essas políticas evidenciam diferentes grupos entre a população negra, mas as mulheres negras estão em quase todos esses grupos sofrendo o impacto das violências e da falta de direitos”, disse.
De acordo com Xavier, considerar a pluralidade entre as mulheres negras e a interseccionalidade das discriminações é decisivo para assegurar o direito à saúde. “Mulheres negras têm uma frente de trabalho ampla e bastante complexa para dar conta de diferentes realidades, porque não queremos deixar ninguém para trás. A nossa força vital é reconhecer que somos diferentes entre nós e, ao mesmo tempo, possibilitar o reforço e a articulação de diferentes grupos para que possamos de fato enfrentar o racismo. O racismo como ideologia, sobretudo, o racismo patriarcal traz para nós uma perspectiva inclusive de apartação entre nós mesmas”.
A assistente social fez o histórico da Política Nacional de Saúde da População Negra, a qual “não requer a substituição de todas as ações no campo da saúde. Ao contrário, ela é o gatilho para a equidade em saúde, para a garantia da integralidade e para a dimensão da universalidade, entendendo que qualquer pessoa no Brasil tem direito à saúde e com qualidade. Mas ela também é o gatilho para dizer que nós, população negra, não podemos ser tratadas como subhumanas, inferiores nesse processo. Ao contrário, somos nós que vamos alargar as fronteiras da ciência, do direito e da democracia. A saúde é um espaço especial para isso”.
Lúcia Xavier recuperou a contribuição das mulheres negras para o SUS e os debates sobre o enfrentamento do racismo na saúde pública. “Estavam na base mulheres negras trabalhando para reconstituir essas práticas de saúde. Por isso mesmo, o SUS é tão denso, mas ainda não atende as nossas necessidades. Mesmo sendo uma das políticas mais democráticas que esse país já teve, ele também é utilizado como um instrumento de morte para a população negra. É ali também que o racismo opera nos colocando em um lugar que deveríamos estar como subhumanos. É ali que é escolhido o medicamento, o tratamento, a acolhida e se viveremos ou morreremos. É por isso que essa é a frente mais complexa que mulheres negras têm travado a vida toda”, resgatou.
Xavier, pontuou ainda, as especificidades das mulheres negras no SUS e o exercício do controle social como decisivo para o monitoramento dos atendimentos. “É nesta frente que nós, mulheres negras, sabemos o sentido do racismo patriarcal. É dali que a gente diz que não é o fato de sermos mulheres que produz em nós tantas de violências, mas o fato de sermos negras, porque ali tem o controle da nossa sexualidade, da nossa reprodução, do nosso direito à vida. Nós somos aquelas que pagamos com a vida no melhor momento das nossas vidas, quando escolhemos ser mãe ou não. É neste momento que se produz todo o ódio racial e diz à ela: ‘o seu direito só vai se restabelecer se eu quiser. Se eu desejar, e é também o pior dos momentos. Talvez um momento parecido com a escravidão, quando você não pode agir ou não tem como agir, porque da sua liberdade dependem outros. E é nesse momento de fragilidade que a gente vê o quanto o racismo é cruel em relação às mulheres. Para controlar mulheres negras se controla quase toda a população negra e se controla também a capacidade que nós temos de enfrentar o racismo e promover novas possibilidades de vida”.
Lúcia Xavier ressaltou a contribuição política da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, que completará cinco anos no mês de novembro. “É a Marcha das Mulheres Negras que declara que sem o fim desse padrão de civilidade para a construção de um novo, que conjuga outras pautas, outros agentes e possibilidades de vida que é o bem viver, sem essa mudança de padrão de civilidade, o racismo segue sem ser erradicado, porque o racismo não produz incômodo para a sociedade brasileira. Ele produz riqueza para a sociedade brasileira. Ele oferece mais água, mais terra, mais comida, mais dinheiro, mais joias. Ele oferece, sobretudo, mais irresponsabilidade para a humanidade, a humanidade branca”, completou.
Cuidados com as famílias e as comunidades – A médica Denize Ornelas mencionou como a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade se posicionou desde o início da pandemia Covid-19. “O processo de discussão dentro da Sociedade sobre a pandemia, dos processos e dos impactos que aconteceriam começou em fevereiro por conta do lançamento do plano de contingência do governo federal. Em nenhum momento, o Ministério da Saúde, os governos estaduais e municipais colocaram nesses planos iniciais a necessidade de estabelecer que as desigualdades já existiam, causariam inequidades e poderiam ser aprofundadas a partir de medidas que eram propostas, olhando apenas os planos de contingência preparados na China e naquele momento, inicialmente, na sociedade europeia, Itália, Espanha e Inglaterra, que estava vivenciando a crise com crescimento exponencial de casos”.
De acordo com a médica, “a reprodução de uma lógica de distanciamento social, isolamento, quarentena que não olhava para as condições reais da população brasileira e que não incluem somente os determinantes específicos genéticos ou os determinantes específicos relacionados às condições de saúde pré-existentes, como maior índice de diabetes, hipertensão, doença arterial crônica, renal crônica, nas pessoas negras, nem especificamente esse critério de vulnerabilidade pela fragilidade da vida por não ser propiciado pelo Estado, não ser responsabilizado pela sociedade como um todo, essa questão de saneamento, distribuição de água, distribuição de insumos, segurança alimentar, segurança nutricional, desse olhar sobre a violência principalmente a violência intrafamiliar nos fazia de cara perceber que a gente deveria fazer alguma coisa”.
Entre as iniciativas da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, fizeram parte o diálogo com comunidades, movimentos sociais, mobilização nas redes sociais, jovens trabalhando com informação nas favelas, estes criaram #Covid19NasFavelas. “Apesar de o nosso grupo ser uma sociedade científica médica, a gente abrange membros médicos, psicólogos, dentistas, profissionais de Educação Física, áreas diversas na produção de conteúdos. Trabalhamos junto com o Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva]”, contou a médica.
Denize Ornelas informou que estão preparando a terceira edição de material informativo, considerando a manutenção da curva da pandemia. A rede de diálogo e mobilização ainda é integrada por rádios comunitárias, igrejas, terreiros, centros espíritas que, conforme a médica, “fazem autocuidado em situações invisibilizadas. As políticas são altamente elitistas, mas não quer dizer que a população não possa adaptar à realidade e se proteger. Parece que a população negra não tem autocuidado, é suicida por si só e não é verdade. A gente sabe que todas as questões de violência e auto-agressão são imputadas a nós como forma de reagir a todo o ódio e violência contra a população negra”.
Alerta ao pré-natal – Para a médica Denize Ornelas, é preciso atualizar o discurso sobre a pandemia para além das mensagens sobre uso de máscaras e distanciamento social, pois há necessidade de chamar atenção para outros cuidados de saúde. “A gente tem visto um fenômeno, que agora se evidencia por números, de afastamento de mulheres do pré-natal, de afastamento de cuidado dessas mulheres. Sem fazer um pré-natal adequado. Já se tinha uma qualidade baixa de pré-natal, mas sem a gente assistir essas mulheres, elas chegam muito mais vulneráveis à violência obstétrica. Elas não têm, muitas vezes, direito a acompanhantes nos hospitais públicos. Muitas vezes, as famílias nem sabem o que está acontecendo com essas mulheres. Às vezes, internam por Covid ou doença respiratória aguda. Isso impacta as famílias porque perder uma mãe, uma matriarca, uma mulher, neste contexto, significa perder a sua fonte de cuidado, um pilar de sustentação dessa família”.
A pandemia Covid-19, conforme a médica, “se soma a maior mortalidade dos homens negros que se soma ao problema histórico de solidão da mulher negra no país e maior aumento de órfãos, crianças com situação de sem pai ou mãe, o que sobrecarrega cuidado dedicados por avós, que, às vezes, são mulheres muito jovens e já cuidam de duas ou três crianças”, frisou.
SUS sem Racismo – A enfermeira e epidemiologista Emanuelle Góes resgatou o empenho da sociedade civil e das comunidades periféricas para organizar a resposta de autoproteção no início da pandemia. “No sentido da reflexão, a pandemia faz com que se pense sobre isso assim como o pós-pandemia. A gente agiu nas comunidades, quando a gente percebeu que o Estado não iria chegar. Agimos na garantia da água, do álcool em gel. A própria comunidade se engajou. Pensar no SUS é pensar com a gente, inclusive”, pontuou.
Góes salientou que “as desigualdades pré-existentes elas se adensam. Em outras situações de crises sanitárias, crises econômicas e guerra, esse cenário se assemelha ao que vemos no mundo: a situação das populações mais vulneráveis, no sentido de ausência de Estado e violação de direitos, piora. Até questões superadas na América Latina, como aumento da malária e do HIV, doenças que mesmo sem cura tinham manejo, redução e certo controle. A dedicação de estudos, serviços, ofertas de insumos para a Covid faz com que outras coisas que não estão solucionadas fica um gap em volta da pandemia”.
Um dos pontos de atenção da enfermeira é a oferta de serviços de aborto legal. De acordo com Emanuelle Goóes “diante do que se chama tirania da urgência para resolver a questão da pandemia do novo coronavírus, a primeira coisa que pensaram foi fechar os serviços de aborto legal. A redução os insumos para métodos contraceptivos, que são, em grande parte, produzidos na Índica, na China, lugares onde é prioridade pensar em insumos para a Covid. Tudo isso vai impactar os direitos reprodutivos das mulheres. As mulheres negras precisam do serviço público e são as mulheres negras que, em grande parte, precisam de oferta do Estado para garantir aquele direito reprodutivo”.
A pesquisadora frisou que mulheres gestantes não foram incluídas nos grupos prioritários e isso pode ter tido efeito nos casos de morte materna. “Grávidas não fizeram parte do grupo prioritário Brasil país em que morrem mais mulheres gestantes, maioria negra que, mesmo com as comorbidades semelhantes às brancas, o que levou à morte é o caso mais grave. Se não coloca a discussão racial e as mulheres negras com olhar para pensar todo mundo, a gente não consegue mudar nada”, assinalou. Segundo números de meados de julho, divulgados pelo Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), cerca de 200 mulheres morreram nos últimos meses na gestação ou no pós-parto depois de serem diagnosticadas com covid-19, e pelo menos 1.860 casos da doença foram notificados nesse grupo de mulheres.
Emanuelle Goés ressaltou que a “discussão racial precisa estar no centro da discussão do SUS, porque são 56% de autodeclarados negras e negros. No campo das oportunidades em relação à pandemia, ao se pensar o SUS, diante do sucateamento e da resistência para que o sistema não mingue, precisamos colocar no centro o que é efetivo para a população, que é o SUS com enfrentamento do racismo. É colocar a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no centro da implementação das políticas do SUS na transversalidade para responder aos princípios do SUS da integralidade, equidade e universalidade”.
Vozes das mulheres negras – As lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030” em tempos de crise e da pandemia Covid-19” fazem parte da estratégia de comunicação e advocacy da ONU Mulheres e do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, composto por entidades organizadoras da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, que completa 5 anos, em novembro de 2020.
As lives foram desenvolvidas por meio da parceria com o Canal Preto, uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho, ONU Mulheres e Cáritas Brasileira.
No diálogo com a ONU Mulheres, o movimento de mulheres negras tem colaborado para fazer avançar a mobilização em torno da incorporação de gênero e raça em agendas internacionais dos Estados-membro da ONU. Entre elas, estão a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, composta por 17 objetivos globais e o princípio de não deixar ninguém para trás do desenvolvimento. Outra agenda importante é a Década Internacional de Afrodescendentes, criada pelos Estados-membros da ONU e com prazo de execução até 2024.