COVID-19: Mulheres à frente e no centro
27.03.2020
Declaração de Phumzile Mlambo-Ngcuka, vice-secretária geral da ONU e diretora executiva da ONU Mulheres.
Uma coisa é clara sobre a pandemia do COVID-19, à medida que as bolsas de valores caem, as escolas e as universidades fecham, as pessoas armazenam suprimentos e a casa se torna um espaço diferente e cheio de gente: esse não é apenas um problema de saúde. É um choque profundo para nossas sociedades e economias, expondo as deficiências de acordos públicos e privados que atualmente funcionam apenas se as mulheres desempenharem papéis múltiplos e mal pagos.
Aplaudimos os esforços dos governos que estão tomando medidas extraordinárias para impedir a propagação de infecções. E a forte liderança, desde as bases até as Chefias de Estado, fornecendo respostas bem direcionadas, da chanceler Merkel e do primeiro-ministro Solberg, que abordam as ansiedades nacionais, ao primeiro-ministro Ardern, destacando o bem-estar em suas medidas econômicas.
Com as crianças fora da escola, as mães em casa ainda podem trabalhar, mas muitas também se tornaram professoras e cuidadoras, com consequências para as pessoas anteriormente empregadas nessas funções. Para as 8,5 milhões de mulheres trabalhadoras domésticas migrantes, frequentemente com contratos inseguros, a perda de renda também afeta sua família. Mulheres profissionais como a mãe sul-coreana Sung So-young relatam o dilema de precisar voltar ao escritório, mas precisar renunciar a isso para permitir o trabalho contínuo de seus parceiros e parceiras com maior salário. À medida que as escolas fecham em mais países, o número de mães que enfrentam isso em todo o mundo aumenta e as consequências se acumulam.
Em meados de março, havia 207.855 casos confirmados em 166 países, áreas ou territórios. Sem dados desagregados por sexo, no entanto, esses números nos permitem apenas perceber parte da história do impacto sobre mulheres e homens. Precisamos de muito mais dados desagregados por sexo para nos dizer como a situação está evoluindo, incluindo taxas diferentes de infecção, impactos econômicos diferenciados, carga de cuidados diferenciados e incidência de violência doméstica e abuso sexual.
Mesmo sem isso, a experiência das principais epidemias anteriores aponta para pontos fortes e vulnerabilidades específicas que podemos observar e ser pessoas proativas para salvaguardar. Onde governos ou empresas implementam proteção à renda, isso pode facilitar esses dilemas, sustentar a renda e evitar levar as famílias à pobreza. Essa resposta também deve incluir a economia informal, onde a maioria das mulheres que trabalham fora de casa ganha a vida. Essa proteção social é mais direcionada especificamente para as mulheres.
O surto de Ebola de 2014-2016, nos países da África Ocidental da Guiné, Libéria e Serra Leo,a e a epidemia de zika 2015-2016, na América Latina, fornecem lições essenciais de saúde pública e socioeconômicas de gênero. As mulheres nesses surtos foram expostas a riscos de saúde e econômicos, como estão novamente, agora, de maneira intrinsecamente conectada com seus papéis na comunidade e responsabilidades como cuidadoras no lar e na família.
Por exemplo, as infecções por Ebola e Zika foram potencialmente catastróficas para mulheres grávidas. No entanto, durante os dois surtos anteriores, o acesso aos serviços de planejamento familiar foi muito limitado e as mulheres grávidas e lactantes foram excluídas da vacinação contra os vírus. Isso enfatiza a importância de contínuos serviços de saúde materna para evitar o ressurgimento de mortes relacionadas ao parto e o acesso igualitário das mulheres ao desenvolvimento e uso de todos os produtos médicos, incluindo vacinas uma vez produzidas.
Na Libéria, 85% das pessoas comerciantes são mulheres. Seus meios de subsistência e segurança econômica sofreram com as restrições de viagens relacionadas ao Ebola, limitando o comércio e afetando bens perecíveis. Naquela época, juntamente com o Banco Central da Libéria, fomos capazes de ajudar milhares de mulheres comerciantes transfronteiriças a salvar e expandir seus negócios por meio de transferências de renda via tecnologia móvel. Isso destaca a importância de prever o papel das mulheres nas medidas de recuperação e o uso inovador da tecnologia na solução de problemas.
Este é um momento para os governos reconhecerem a enormidade da contribuição que as mulheres fazem e a precariedade de muitas. Isso inclui um foco em setores em que as mulheres são super-representadas e mal remuneradas, como pessoas assalariadas diariamente, pequenas empresárias, aquelas que trabalham nos setores de limpeza, assistência, caixa e catering e na economia informal.
Globalmente, as mulheres representam 70% das pessoas que estão trabalhando da linha de frente no setor social e de saúde, como enfermeiras, parteiras, faxineiras e lavanderias. Precisamos de estratégias de mitigação que visem especificamente os impactos à saúde e econômicos do surto do COVID-19 nas mulheres e que apoiem e aumentem a resiliência das mulheres, como vimos na Libéria e em outros lugares. E para tornar essas respostas bem planejadas, as mulheres devem estar totalmente engajadas em sua criação, ser beneficiárias prioritárias da ajuda e parceiras na construção de soluções a longo prazo.
Estamos aprendendo mais a cada dia com o arco da pandemia na China. Trabalhamos em estreita colaboração com a liderança do país como parte da resposta coletiva da ONU. As campanhas conjuntas atingiram 1 bilhão de pessoas, com comunicações que aumentam a conscientização por meio de informações de saúde pública, combatem o estigma e a discriminação, refletem as necessidades específicas das mulheres, promovem a liderança e as contribuições das mulheres e desenvolvem planos de recuperação que vinculam igualdade, saúde e economia.
Estou orgulhosa que nossa equipe da ONU Mulheres está presente em todas as etapas, assegurando o acesso a informações sensíveis a gênero e colaborando com agências-irmãs como o UNFPA, que vem mobilizando apoio para mulheres grávidas e condições seguras para o parto. Também estamos trabalhando com organizações de mulheres em todo o mundo, por exemplo, com a Rohingya Refugees em Cox’s Bazar (Bangladesh), onde mulheres, especialmente em ambientes altamente segregados, podem não ter informações críticas. Aqui, as mulheres se organizaram em uma rede que educa mulheres e meninas sobre como manter a segurança e evitar infecções.
Todas nós, envolvidas e envolvidos nesse esforço, seja do setor público ou privado, precisamos adotar uma abordagem coordenada e centrada nas pessoas para desenvolver rapidamente a capacidade do sistema de saúde nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, fazendo um esforço consciente para colocar as mulheres na frente. Por exemplo, criar um melhor acesso a equipamentos de proteção individual adequados para as cuidadoras domiciliares e remover obstáculos no seu trabalho, promovendo acordos de trabalho flexíveis e garantindo o fornecimento de produtos de higiene menstrual. Essas necessidades são ainda mais importantes para áreas de isolamento social ou quarentena. O mesmo acontece com as considerações de violência de gênero que são exacerbadas por essas condições, mas podem não receber a atenção de que precisam, na tentativa de responder à pandemia.
A violência contra as mulheres já é uma pandemia em todas as sociedades, sem exceção. Todos os dias, em média, 137 mulheres são mortas por um membro de sua própria família. Também sabemos que os níveis de violência doméstica e exploração sexual aumentam quando as famílias são colocadas sob as crescentes pressões advindas de preocupações com segurança, saúde, dinheiro e condições de vida restritas e confinadas. Vemos isso frequentemente entre as populações deslocadas em campos lotados de refugiados e refugiadas; onde a violência doméstica relatada triplicou recentemente em alguns países que praticam isolamento social.
A ciberviolência também se tornou um recurso rotineiro da internet e, à medida que as restrições de movimento aumentam os jogos on-line e o uso de salas de bate-papo, essa é uma área de vigilância para proteger as meninas. As meninas também podem intensificar seu próprio trabalho de resistência nessa área e liderar com soluções de mídia social. Na China, a hashtag #AntiDomesticViolenceDuringEpidemic decolou, ajudando a expor a violência como um risco durante o isolamento e vinculada a recursos on-line.
O COVID-19 nos oferece uma oportunidade de ação radical e positiva para corrigir as desigualdades de longa data em várias áreas da vida das mulheres. Há espaço para não apenas resistência, mas recuperação e crescimento. Peço aos governos e a todos os outros prestadores e prestadoras de serviços, incluindo o setor privado, que aproveitem a oportunidade para planejar sua resposta ao COVID-19 como nunca fizeram antes e que levem em consideração totalmente a perspectiva de gênero, construindo proativamente conhecimentos de gênero em equipes de resposta. Por exemplo, incluir fundos emergentes para abrigos de mulheres, para que esses possam oferecer apoio a mulheres que precisam escapar de relacionamentos violentos e almejam apoio econômico, hospitalidade e pequenas empresas em que as mulheres são predominantemente empregadas em contratos precários, e são mais vulneráveis à economia forçada de custos.
Tudo isso precisa de financiamento; as organizações que respondem ao COVID-19 precisam de recursos para inclusão social e de gênero, e imploro a doadoras e doadores que incluam isso em seu apoio, por ser um elemento constante e fortemente positivo a ser incluído nos orçamentos de desenvolvimento e melhorando, em vez de reduzir, o apoio às medidas de igualdade de gênero. As organizações que atendem às mulheres precisam de assistência para reforçar sua resposta e se preparar para a recuperação. Isso precisa de recursos que muitas organizações não possuem. Apelamos às empresas para aumentar seu apoio às mulheres, em vez de adotar uma abordagem de austeridade. É necessária uma resposta global coordenada da magnitude que se seguiu à crise financeira, construída com uma lente de gênero e totalmente inclusiva.
Este é um momento de acerto de contas para nossos valores nacionais e pessoais e um reconhecimento da força da solidariedade para os serviços públicos e a sociedade como um todo. Esta é uma oportunidade para reconstruir sociedades melhores, mais fortes, resilientes e igualitárias. É um momento de priorização ousada. Dar os passos certos agora, de olho em um futuro restaurado, pode trazer alívio e esperança às mulheres do mundo.