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A ONU Mulheres é a organização das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres.

Brasil

Maria da Penha e a lei que transformou a luta contra a violência de gênero no Brasil: uma entrevista especial para os #21Dias



27.11.2024


Maria da Penha e a lei que transformou a luta contra a violência de gênero no Brasil: uma entrevista especial para os #21Dias/feminicidio direitosdasmulheres destaques 16 dias de ativismo

Maria da Penha é presidenta de honra do Instituto Maria da Penha (IMP), fundado em 2009 para contribuir com a aplicação integral da lei que leva seu nome. Crédito: Divulgação / IMP

Em 2024, a principal e mais conhecida lei brasileira para enfrentar a violência contra as mulheres completou 18 anos. Para fazer um balanço desse histórico e apontar caminhos para a implementação integral da norma, a ONU Mulheres conversou com a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que empresta o nome à lei. Sobrevivente de duas tentativas de feminicídio pelo então marido, ela viu seu caso ganhar repercussão internacional e levar à responsabilização do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).

Diante disso, um consórcio de ativistas e organizações feministas propôs o texto que viria a se converter na Lei 11340, após ser debatida no Parlamento e sancionada pelo então presidente Lula em 2006. Maria da Penha reconhece que, enquanto muitas mulheres já foram salvas pela lei, outras tantas não puderam ser, e defende que a diminuição dessa lacuna passa pela estruturação de políticas em nível local, com foco nas unidades de saúde: “Essa mulher [em situação de violência], com grande probabilidade, se as políticas públicas funcionarem, não vai ser assassinada”, frisou.

Confira os principais trechos da conversa:

Em 2024, a Lei Maria da Penha completou 18 anos. Desde então, o que mudou?

No início, foi uma surpresa muito grande, uma alegria, uma realização. Não apenas porque a lei leva o meu nome, mas porque foi criada uma lei para proteger mulheres e punir seus agressores. É uma violência ainda hoje invisibilizada em muitos locais do país, por falta de políticas públicas. Nas grandes cidades, geralmente capitais, a lei tem atendido ao seu objetivo. Mas muito ainda falta.

Em quais áreas mais falta?

Na conscientização das mulheres sobre os seus direitos. E na transformação, através da educação, desse conhecimento. Porque as crianças que nascem em um lar violento, que vivem em um ambiente violento, levam para a comunidade e para a vida adulta essa violência que sofreram. Elas repetem a violência que aprenderam. Existe um descaso ainda muito grande, porque nem todas as escolas estão comprometidas em levar para as salas de aula essa conscientização contra as culturas do ódio – não só a do machismo, mas do racismo e de outras que a gente conhece.

Temos acompanhado, com muita preocupação, o avanço de uma agenda antidireitos no Brasil e no mundo. Como seu trabalho e seu legado estão sendo afetados?

A circulação de fake news a respeito da minha história tem aumentado muito. A parte contrária a uma sociedade mais justa e igualitária tem contribuído para que essa sociedade injusta continue. No meu caso, as fake news me fizeram e ainda me fazem sentir traumas. Não fui mais ao supermercado, não me permiti ir inclusive a consultas médicas, porque em vários momentos fui interpelada de uma maneira pela qual me senti exposta a uma agressividade.

Na sala de espera de consultórios médicos, pessoas já me falaram que eu era uma mulher que gostava de mandar prender homens. Então, como é que eu podia me sentir à vontade para sair? Deixei de ter minha vida particular e fiquei em casa. Logo de início, comecei a ver que, enquanto as mulheres aplaudiam, os homens se sentiam prejudicados pela lei que leva o meu nome. E foi a partir daí que, em todos os eventos em que fui, foi pedido um segurança.

Hoje, graças a Deus, me sinto mais segura, porque fui protegida. O Ministério das Mulheres me deu essa proteção. Estou com medida protetiva, só saio com segurança. As minhas consultas estão sendo retomadas e sempre vou com seguranças, de maneira bem discreta, e me sinto muito segura nesse sentido.

Vou contar uma coisa que mexeu muito comigo. Eu tinha ido a uma consulta geriátrica e, quando saí do consultório, uma criança veio correndo me abraçar dizendo: “É ela, mamãe, é ela que eu vi na escola”. A escola tinha sensibilizado essa criança. Ela ficou eufórica e disse: “Eu quero tirar uma foto com ela”. Aquilo foi muito emocionante, emocionou até o segurança. Por isso a importância de se educar as crianças. Se elas tiverem conhecimento, com certeza vão saber tratar as mulheres do seu ciclo de relações quando crescerem.

Quais outras ações podem realmente fazer a diferença no combate à violência contra as mulheres e meninas?

As mulheres terem consciência de que elas têm direitos. Isso só pode ser dado através da escola e das unidades de saúde, onde é possível identificar abuso de criança e que uma mulher é vítima de violência, mesmo que não conte. Aquelas idas constantes à unidade de saúde, com as mesmas sintomatologias físicas e psicológicas, demonstram que alguma coisa está errada na vida dela.

Essa mulher precisa ser conscientizada. Precisamos colocar no centro de saúde informações sobre a violência contra a mulher. Nós criamos no Instituto a prateleira Maria da Penha, por exemplo, que são cartilhas que levaram muita informação à população quando a lei foi sancionada. Todas as entidades públicas fizeram as suas cartilhas.

Precisamos ter o centro de referência da mulher dentro da unidade de saúde. Um espaço com psicólogo e serviços social e jurídico. Onde essa mulher, se fizer a opção de denunciar, terá apoio jurídico ali mesmo. E vai ser orientada e encaminhada para uma macrorregião, onde vai começar uma nova vida longe da violência. E vai ter condição de denunciar o seu agressor, que vai ser punido e vai repensar sua conduta. Esse agressor também deve passar por uma capacitação, por uma reflexão. Porque, muitas vezes, esse agressor viu seu pai bater na sua mãe, seu avô bater na sua avó, e isso ser considerado normal. Então ele está repetindo o que aprendeu. O que a gente não quer é que as nossas crianças aprendam a esse comportamento.