“Eu falo do mundo que a gente quer com trabalho decente, proteção social e crescimento inclusivo e justo”, diz Camila Pitanga, embaixadora da ONU Mulheres Brasil
30.05.2018
Discurso da embaixadora da ONU Mulheres Brasil, Camila Pitanga, no encerramento do 3º Congresso Nacional de Liderança Feminina (Conalife), promovido pela ABRH-SP com o apoio da ONU Mulheres e do movimento ElesPorElas – HeForShe, em 24 de maio de 2018, na cidade de São Paulo
“Depois que voltei ao trabalho, o meu desempenho foi colocado em dúvida. Sabe aqueles projetos com mais responsabilidade? Eu não estou mais neles. E aquela promoção que eu tanto batalhei? Está cada dia mais distante desde quando voltei da licença maternidade. Quer saber como eu me sinto? Jogada pra escanteio. Eu vejo o time jogar com toda a sua garra. E eu? Tô na reserva. Pior! Já estou vendo a hora em que estarei totalmente fora do jogo”.
Dizem que sou “boazinha demais”. A colega que chegou agora na empresa é tida como “agressiva demais”. Para uma mulher, são muitos carimbos: oferecida, louca, destemperada. Já eles? Ah, eles são: bons com as pessoas, sensatos, assertivos, líderes natos.
Por que adjetivos tão diferentes para comportamentos semelhantes?
“Primeiro uma delicadeza. Depois, convites inapropriados. Em seguida, forçação de barra. Depois de muito assédio sexual, virou assédio moral. Todo mundo prefere ignorar. O jeito foi mudar de emprego”.
“Eu cheguei confiante. Aquela era a minha chance. A vaga dos sonhos, sabe? Eu estava preparada. Eu já tinha passado por várias etapas daquela seleção. Mas caí na entrevista. Um amigo com as mesmas competências e formação pegou a vaga. É aí que todo o peso de ser mulher e negra se revela: quando você é derrubada. Ainda mais no meu ramo, o da ciência e tecnologia”.
“Comecei o meu negócio. Agora, eu sou dona do meu tempo, dos meus desejos. Todo mundo diz que eu tenho o mundo inteiro nas minhas mãos. Mas como dar conta de tanta coisa? Empreendedorismo é mais complexo quando se tem ainda a jornada de cuidar da casa e da família”.
Alguém aqui se se reconheceu em algum papel? Se não se viu, certamente conheceu alguém que viveu uma dessas histórias.
Essas são algumas vozes, pensamentos e sentimentos de muitas mulheres, trabalhadoras de diferentes profissões. Diferentes momentos de carreira. Diferentes campos produtivos. Diferentes ramos da economia. O que elas têm em comum? Narram machismo, racismo e outras formas de discriminação.
Eu sou Camila Pitanga. Atriz. Mãe, filha. Orgulhosa de minha cor e origem.
Quando nasci, recebi meu primeiro carimbo: Mulher. Por conta disso, já tinha um script, um papel que já me haviam determinado. Escolher ser feminista me permitiu entender que posso esculpir a mulher que quero ser. Não sou uma acadêmica de gênero. Não sou CEO de uma grande empresa, sequer uma microempresária (se bem que gerenciar carreira, casa e família me dá credencial para falar de um tipo de liderança, não?).
Ao longo da minha caminhada, cuidei de me envolver numa espécie de ativismo, no meu engajamento no Movimento Humanos Direitos, fazendo parte do “Mexeu com uma mexeu com todas”, através das minhas redes sociais e, com muita honra, como Embaixadora da ONU Mulheres Brasil.
Hoje estamos aqui para debater essa causa tão importante: diversidade, equidade de gênero e liderança feminina em todos os segmentos da nossa sociedade.
Ao longo deste congresso, vimos histórias inspiradoras de mulheres que superaram obstáculos e ocupam espaços ainda muito dominados pelos homens.
Nos últimos 20 anos, estudos conduzidos por Adler e Eisler mostram que organizações e instituições têm se tornado menos verticalizadas e hierárquicas. Empresas e fundações que alcançaram certo sucesso são reconhecidas pelo foco na valorização do talento, da produtividade, e menos em questões como gênero, raça, etnia.
E mais importante, muitos especialistas dizem que o estilo de liderança que é característico de nós, mulheres, vai ao encontro do que se espera de uma liderança do século 21, que é focada no trabalho em grupo, na coletividade.
Nós, mulheres, mudamos. Grande parte de nós migrou do trabalho doméstico para o mercado de trabalho. Conquistamos uma certa independência financeira, apesar da ainda persistente disparidade salarial. Nosso nível educacional hoje em dia é comparável ao dos homens, com exceção às áreas das ciências, por enquanto. Nós ocupamos outros lugares.
O mundo mudou. As distâncias estão se encurtando, a informação corre na velocidade da luz e, agora, organizações que priorizam equidade de gênero aumentam consideravelmente sua reserva de talento, ampliando a probabilidade de mulheres em posição de liderança.
A forma de liderança também mudou. Atualmente, segundo Eisler, liderança não é mais baseada em controle, coerção e hierarquia, mas sim em inspiração, empoderamento, em tornar as coisas mais fáceis. Assim, mulheres líderes, ou líderes com essas características que remetem ao mundo feminino, acabaram se tornando um símbolo de um novo tipo de liderança que resulta em uma maior eficácia e sinergia em comparação com o passado. Inúmeras pesquisas mostram que a alternância de estilos e perfis de liderança torna as empresas mais inovadoras, eficientes e lucrativas.
E aqui faço minhas as palavras da filósofa política e feminista Djamila Ribeiro: essa nova liderança precisa ser inspiradora, no sentido de estar comprometida com o crescimento humano, de entender as nossas diferenças, de que as pessoas partem de postos distintos. Entender que, quanto mais diversidade, mais se tem inovação, criatividade, tornando melhor o ambiente de trabalho e, por consequência, trazendo mais competitividade e lucratividade para a empresa, que passa a atingir públicos cada vez mais amplos.
A sociedade também está mudando. Está mais atenta à representatividade nas empresas, o que acaba por influenciar no consumo de determinada marca ou produto. Não por acaso, no último ano, algumas empresas brasileiras, cientes de sua responsabilidade social, passaram a formar comitês de diversidade, com planos de metas que estabelecem contratação anual de determinado número de mulheres, negros e outras ditas “minorias”.
Com consumidores e consumidoras cada vez mais exigentes, é muito importante a empresa mostrar para o mundo que respeita os direitos das mulheres e não tolera discriminação baseada em gênero. Porque vamos combinar, né? Se só homens (geralmente brancos) chegam ao topo da empresa ano após ano, não dá pra dizer que é uma “coincidência”, nem que TODAS as mulheres da empresa têm um desempenho pior que TODOS os homens.
O domínio do homem branco na incessante atividade econômica é um produto histórico-social. Uma relação que foi construída. E aí eu pergunto: se tudo foi construído, o que nos impede de construir uma nova relação entre homens e mulheres? O que nos impede de construir um novo agora? E não apenas porque os direitos das mulheres são direitos humanos, como bem disse Angela Davis em seu discurso na Marcha das Mulheres, no último dia 8 de março. Mas porque uma sociedade mais igualitária, que permite que a mulher também lidere e desenvolva todo o seu potencial criativo, com oportunidades econômicas concretas que lhe permita viver com dignidade e plenitude, pode ser economicamente mais eficaz, sustentável e lucrativa.
É por isso que eu me dirijo a vocês – empresárias, empresários, gestoras e gestores, executivas e executivos –, porque transformar a exclusão e a discriminação sistemática com que a maior parte das trabalhadoras, empresárias e empreendedoras brasileiras vive, todos os dias, coloca em questão não somente a organização das mulheres em coletivos, redes de afinidade, mentorias ou programas de coaching.
A transformação exige compromissos, objetivos, metas, avaliação de progressos, correção de rotas e transparência. É preciso olhar a empresa, ver pessoas, situações e lugares de que, muitas vezes, pouca gente se dá conta.
Eu falo aqui do mundo que a gente quer com trabalho decente, proteção social e crescimento inclusivo e justo. Do Brasil que ainda explora o trabalho das mulheres pagando menos e violando direitos trabalhistas, jogando as mulheres na informalidade para poder lucrar mais.
Eu falo aqui do Brasil que diz ser aberto à diversidade no ambiente do trabalho, mas que não faz mudanças estruturais que quebrem o teto de vidro – aquele que limita a ascensão profissional das mulheres.
Muitas mulheres não tiveram chance de estudar e se preparar o suficiente. É como se estivessem em pisos historicamente pegajosos que as impedem de correr com a mesma velocidade dos homens na direção dos seus sonhos profissionais.
Eu falo do Brasil que não consegue alterar a prevalência de homens brancos nos postos de direção, com maiores salários e poder de decisão. Do Brasil que caminha a passos muito lentos para assegurar a representatividade e a diversidade das mulheres nas posições de poder.
É neste Brasil, no ano de 2018, que a ONU Mulheres está ampliando a área de empoderamento econômico. Em parceria com a União Europeia e a Organização Internacional do Trabalho, a ONU MULHERES quer aumentar a promoção dos Princípios de Empoderamento das Mulheres nas empresas brasileiras. Esta é mais uma oportunidade importante em que podemos caminhar, juntas e juntos, dando passos decisivos pela igualdade de gênero, raça e etnia.
Algumas empresas brasileiras, signatárias dos Princípios de Empoderamento das Mulheres, da ONU Mulheres e do Pacto Global, já se colocaram nessa linha de frente. Elas incentivam as mulheres a desempenhar outras funções, inclusive na área de tecnologia e exatas; tomam medidas para progressão de carreira; agem pela melhoria da capacidade das mulheres em negociar o próprio salário; adotaram licença paternidade para oito semanas; e apoiam a organização da vida privada de homens e mulheres para as tarefas domésticas e familiares. Algumas, inclusive, estabeleceram cota mínima de 30% de mulheres em cargos executivos.
Esta é a hora de fortalecer as ações nas empresas, nos empreendimentos e na cadeia produtiva, e trazer modelos inovadores e exemplos concretos para a economia. É a hora de identificar mais parceiras e parceiros.
É a hora de ampliar a rede de ação concreta em favor dos direitos econômicos das mulheres. É a hora de criar oportunidades para que as mulheres possam se desenvolver em qualquer campo profissional.
Como diria a imortal Rosiska Darcy, a reengenharia da vida pessoal, vida profissional e vida familiar traz novos desafios para a sociedade como um todo, para que as mulheres tenham o direito de ter tempo para viver a vida para e por si mesmas.
A paridade de gênero precisa ser realidade no mundo dos negócios não somente pela não discriminação contra as mulheres, que afronta os direitos humanos como um todo, mas pela distribuição equitativa das riquezas. A paridade de gênero é boa para os negócios, mas é melhor ainda para as mulheres e os homens. Inegavelmente beneficia toda a humanidade.
Muito obrigada.