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A ONU Mulheres é a organização das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres.

Brasil

Para todas as meninas e mulheres: Cleo Manhas lembra que é essencial garantir recursos para a educação  



17.02.2025


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Cleo Manhas: “Temos ressaltado a importância de um PNE que de fato fale das questões de gênero e raça e de como elas devem ser tratadas em sala de aula, além de ter um financiamento adequado”. Crédito: Divulgação

#ParaTodas é uma campanha da ONU Mulheres no marco do 30º aniversário da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim. Cleo Manhas, do Inesc e da Rede de Ativistas do Fundo Malala, fala sobre desafios da educação no Brasil e da sua inegável contribuição para a igualdade de gênero

Se não está contemplada no orçamento, dificilmente uma política pública vai sair do papel. Esse é um dos principais mantras que orientam o trabalho de Cleo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) há quase duas décadas. Mestra e doutora em educação, ela se especializou na análise do orçamento público brasileiro e do financiamento da educação no país.

Em 2021, tornou-se uma das champions da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala, à frente de uma pesquisa do Inesc sobre a situação do ensino médio durante a pandemia. Hoje, acompanha de perto as discussões sobre o Plano Nacional da Educação (PNE) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Inaugurando essa série de entrevistas, ONU Mulheres conversou com Cleo para avaliar os desafios da educação brasileira à luz dos 30 anos da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim. Leia a seguir os principais trechos da conversa:

Em 2025, uma das agendas de trabalho da ONU Mulheres é celebrar e reavaliar os 30 anos da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim. Entre os 12 objetivos listados pelo documento para melhorar a educação em todo o mundo, estão garantir a igualdade no acesso, em todos os níveis; estabelecer sistemas de ensino não-discriminatórios; e destinar recursos suficientes. Trinta anos depois, como você avalia esses desafios no contexto brasileiro?

Acho que se mantêm. Tivemos no Brasil um avanço grande com relação ao acesso. Ao menos na educação básica, tínhamos igualdade de acesso. Mas de uns tempos para cá, até isso tem sido dificultado, já que recursos vêm sendo cortados.

No ensino médio, especialmente, isso é um enorme desafio. E na pandemia isso se agravou, porque muitos estudantes ficaram dois anos sem acessar a escola [fisicamente] e se formaram sem terem visto nem metade do que pede o currículo. Tiveram uma educação super precária. E mesmo que acessem uma universidade, a permanência é muito mais dificultada.

Na pesquisa que fizemos durante a pandemia, vimos que as desigualdades estão escancaradas. Entre as meninas e mulheres brancas e os homens brancos, o acesso está um pouco mais equalizado. Mas se fazemos um recorte de raça, vemos que as mulheres negras acessam e permanecem menos. No meio rural os indicadores pioram, porque há muito mais exclusão. E ainda tem o desafio da educação quilombola e indígena. Em muitos lugares, ela está sendo ofertada na modalidade de educação a distância, de forma assíncrona, por meio de programas de TV. É uma educação muito precarizada.

Sobre estabelecer sistemas não discriminatórios, é uma outra questão que não foi resolvida. Pesquisas mostram que as populações negra e rural são as mais prejudicadas. E as desigualdades – regional, de gênero, de raça, renda – vão se somando. E os recursos não são suficientes.

Na meta 20 do último Plano Nacional da Educação (PNE), a proposta era chegar à metade do período com 7% do PIB para a educação e, ao final do decênio, com 10%. Concretamente, a gente saiu de 5% do PIB para a educação quando o PNE foi aprovado, em 2014, e chegamos a 5% em 2024. Ou seja, nada mudou.

Pode contar mais sobre a incidência do Inesc e de outras organizações do Fundo Malala no PNE?

O Plano é tímido com as questões raciais e praticamente ausente nas questões de gênero, então sabíamos que seria necessária uma incidência grande sobre o PNE. Nós do Inesc, junto com o N’zinga e a Conaq, criamos o projeto “Dandaras e Carolinas – Por um PNE antirracista e antissexista”. Temos ressaltado a importância de um PNE que de fato fale das questões de gênero e raça e de como elas devem ser tratadas em sala de aula, além de ter um financiamento adequado.

O projeto pretende fazer em abril uma audiência pública na Câmara dos Deputados. Estamos fazendo uma formação com 30 meninas e vamos trazê-las a Brasília para fazer essa incidência. São10 de vários quilombos do Brasil, selecionadas pela Conaq; 5 de um quilombo urbano de Belo Horizonte, o Quilombo Manzo; 10 da periferia de Brasília e 5 da periferia de Recife.

Sabemos que vai ser muito difícil, tendo em conta a composição e a correlação de forças do Congresso Nacional. Corremos um risco, inclusive, de sair com um texto pior do que o que entrou. No texto inicial, que será discutido, as metas são praticamente as mesmas que vieram no PNE anterior – aprovado em 2014 para acontecer até 2024, mas que ainda não aconteceu… Agora, querem “esticar” essas metas para 2034, sendo que quase todas, da educação básica ao ensino superior, não foram cumpridas. E algumas que haviam sido cumpridas regrediram, como o número de mestres e doutores. No primeiro ano do governo Bolsonaro, tivemos uma queda de financiamento abissal, em todos os níveis, e a educação superior perdeu muito.

Com a PEC da transição, os recursos da educação foram ampliados por meio de muita negociação. E a gente esperava que em 2024 eles fossem aumentar, mas ficaram praticamente na mesma. Acredito que, para 2025, também não vai diferir muito. Até porque existe essa nova regra fiscal, que é melhor do que o antigo teto dos gastos, mas também extremamente restritiva.

E veio no final do ano passado o Pacote de Corte de Gastos, que determinava que 20% do novo Fundeb deveria ir para a educação em tempo integral. Dentro do Congresso, com muita incidência, a porcentagem caiu pela metade. Mas a maior parte dos municípios não têm sistema de arrecadação. São pequenos, pobres, em estados empobrecidos, e muitas vezes só têm o recurso do Fundeb para toda a educação. Se obrigamos que parte disso ainda vá para fazer educação em tempo integral, sendo que os municípios não têm recursos novos nem para a infraestrutura das escolas, como vai ser?

Para meninas e mulheres rurais, migrantes, com deficiência, negras, indígenas, quilombolas, é ainda mais difícil acessar, permanecer e concluir os estudos. Como construir políticas de educação interseccionais?

É preciso investir na infraestrutura das escolas, porque uma das prioridades do governo atual é a escola em tempo integral. Mas não basta colocar uma placa na porta da escola dizendo “escola em tempo integral”. Demanda uma infraestrutura adequada para que crianças e adolescentes fiquem ali o dia inteiro. Demanda outras atividades para além do currículo obrigatório; demanda oferecer esporte, cultura e outras questões importantes. Então, sem recursos, não tem jeito. Nossa batalha é que tanto a sociedade quanto o governo percebam que essas políticas de austeridade fiscal impactam violentamente as políticas sociais.

Não é possível termos uma educação de qualidade anti sexista, antirracista, não discriminatória, que de fato inclua todas as pessoas e que reduza desigualdades, dentro de um sistema neoliberal. O que uma política neoliberal quer? Que se faça as maiores especulações, que a bolsa esteja funcionando super bem, e que os juros estejam nas alturas para que haja maiores lucros, e que o governo tenha cada vez menos políticas sociais e menos recursos para investir nelas. Mas a política de austeridade fiscal impede a realização do direito à educação ou de qualquer outro direito que as cidadãs e os cidadãos tenham.

Dos 12 indicadores ligados ao ODS 4 (Educação de Qualidade), oito são relacionados a gênero. Por que é tão importante adotar a perspectiva de gênero ao mensurar o atingimento desse Objetivo?    

Um dos tópicos do Relatório Luz sobre os ODSs para o qual eu contribuo é a educação. Se olhamos da conferência de Pequim para cá, já tivemos momentos melhores do que hoje. Porque não só no Brasil, mas no mundo, o avanço da extrema direita tem levado a isso… Eles inventaram essa história, que no Brasil encontrou eco e já faz tempo, da ideologia de gênero. Vemos uma campanha de retrocesso, de criminalização do feminismo. E temos percebido que mesmo as meninas têm tido dificuldade de entender por que essa questão de gênero é importante.

Não se fala mais de educação sexual e reprodutiva dentro das escolas, por exemplo, é um tema interditado. Mas nunca foi tão importante falar de gênero e tentar discutir essa questão de uma maneira que retire as ideologias que colocaram. Porque existe uma ideologia de extrema direita pesada e estamos perdendo essa batalha todos os dias, porque isso está nas casas, nas igrejas, na comunidade… E a gente percebe, entre a parcela mais empobrecida da população, que esse discurso entrou fortemente. Estamos tendo que fazer abordagens diferenciadas, nos reinventar.